quinta-feira, 8 de março de 2012

O poder humanizador da poesia





Adélia Prado



Adélia Prado é mineira de Divinópolis
Quando eu falo de poesia, não é apenas da poesia que eventualmente – mas nem sempre – nós encontramos nos poemas. Falo do fenômeno poético de natureza epifânica, reveladora, daquilo que confere a uma obra de arte o estatuto de obra de arte. Pode ser música, pode ser escultura, pintura, teatro, dança, cinema e literatura, que é onde eu me coloco.

Tudo isso que foi nomeado, toda arte, tudo aquilo que eu chamo de arte, se justifica pela poesia que ela contém. Se não tiver poesia, não é cinema, não é teatro, não é pintura, não é literatura. Não tendo, ela é tudo, menos obra de arte. A obra verdadeira é sempre nova, não cansa, porque traz em si mesma, e apesar de si mesma, algo que não lhe pertence, e nem pertence ao seu autor. Vem de outro lugar, de uma instância mais alta, e através da única via possível, que é a via da beleza.

Em arte, quando eu falo beleza, eu estou falando não de boniteza, mas de forma. Arte é forma. Não é do bonito que nós estamos falando. A forma, a beleza, revela o ser das coisas. É muito estranho falar do ser das coisas. Mas esse ser é inapreensível. Eu não dou conta de pegar o ser de uma rosa, de um rio, de uma paisagem ou de um rosto. Mas quando a arte faz isso e ela apreende essa coisa mais alta que está atrás das coisas, ela nos revela, nos remete à beleza suprema, se nós tivemos despidos do orgulho da razão e da lógica.

Então para que esse fenômeno de revelação da arte possa acontecer nós temos que estar desnudos de todo o orgulho. A razão tem de abrir mão de seu poder, a lógica tem de abrir mão de seu poder, para que a obra seja apreendida no único lugar para o qual ela quer ir, que é o centro da pessoa, aquilo que nós chamamos o sentimento, os nossos afetos, aquilo que nos constitui felizes ou infelizes. Não é o que nós sabemos mas é o que nós sentimos. Arte é para o sentimento, é para a sensibilidade, é para a inteligência do coração, e não para a nossa inteligência lógica.

Santo Tomás de Aquino, que falou sobre tudo na sua Suma Teológica e na sua obra filosófica, disse que todo ser é belo. Se alguma coisa é, ela é bela. E a arte revela o ser e toda obra verdadeira é necessariamente bela. Não tem jeito! Ela tem o jeito belo de mostrar até a feiura. É por isso que uma obra verdadeira, retratando alguma coisa horrível, asquerosa, pode nos mover a ter aquela obra na parede ou tê-la em casa, ou comprar o livro, ou a comprar o disco. Porque a beleza do ser é irretocável, seja de que forma esse ser se apresente.

Porque a beleza na arte, sendo a beleza da forma, ela não é o assunto. A gente faz muito esse equívoco, não é? A arte é o assunto, o enredo da novela, o enredo do romance, aquilo que a poesia está falando. Não é isso que é a beleza. Não é o que está sendo dito, mas como está sendo dito. Não é a coisa, mas como ela se mostra através da mão do criador. É isso o que nós chamamos forma. Não é o que está se mostrando, mas como se mostra. Se não fosse assim, guerras, execuções, moribundos, enchentes, todo tipo de catástrofe não poderia ser retratado pelo artista, porque não é coisa bonita, não é coisa que pode aparecer no salão. No entanto, a obra, a arte fala de absolutamente tudo. Porque qualquer coisa é a casa da poesia. Ela não escolhe tema nem enredo nem assunto, ela pousa onde lhe apraz. E é esse o momento que é apreendido pelo poeta, pelo cineasta, enfim, pelo homem criador.

Agora, nós podemos perguntar: por que isso, por que esse fenômeno nos humaniza? Por que é que a arte nos humaniza? Porque mostra não a aparência – que já está na natureza, a coisa já está aí para nós –, mas nos induz, por causa da emoção que ela nos causa, nos induz à intimidade, à alma das coisas, à nossa própria intimidade. E é por isso que ela nos comove, porque mexe não em nossos pensamentos, mas em nossos afetos, naquilo que nós sentimos; e me oferece – toda obra me oferece – um espelho. A obra é um espelho. Ela faz com que eu me reconheça nela, naquilo que eu estou vendo. Se você, diante de um livro, de uma pintura, de um poema, diz: meu Deus, mas como esse autor pôde tocar nisso! Eu achava que só eu sentia isso, só eu sabia disso. Aí é que está o nosso equívoco. E aí mora a universalidade da obra verdadeira. Qualquer obra, feita na China, no Japão, no Canadá, no Brasil, qualquer obra verdadeira tem o dom de espelhar a humanidade, aquilo que nos é comum, e nada é mais comum em nós do que nosso desejo e do que nossos afetos: queremos ser felizes, e temos medo, temos compaixão, temos ódio, temos ira, temos bondade, todas as más e boas paixões que nos habitam – e é esse material que faz a obra de arte. Ela não é um pensamento filosófico, não. Ela expressa aquilo que nós sentimos, aquilo que é humano. E só por isso ela me alimenta, porque dá significação e sentido na minha vida. Isso é muito interessante, porque nós todos parecemos de uma angústia, uma angústia imensa – a criancinha pequena já padece desta angústia, uma das primeiras angústias humanas – que é a angústia do tempo, da finitude. Nós começamos e acabamos. Somos finitos, nós passamos. E a obra de arte não sofre esse desgaste. Ela está fora do tempo.

Uma emoção muito profunda que você teve, uma paisagem muito bela que você viu, qualquer coisa que te comoveu, comoveu e passou. Mas quando aquilo é apreendido, ou em um quadro, ou em uma poesia, ou em uma dança, em qualquer obra de arte, essa obra segura o tempo para mim. Eu falo: Graças a Deus eu tenho isso para me lembrar!

E tem mais uma coisa: ela não apenas segura o tempo, mas ela tem uma qualidade que nós perseguimos sempre, que é a unidade do nosso ser, a unidade da nossa experiência. Porque nós vivemos de maneira fragmentária. Quantas coisas nós já fizemos hoje? Tudo fragmentado! Uma hora é tomar café, uma hora é tomar banho, uma hora é se vestir, outra hora é encontrar com as pessoas. Há fragmentos de tempo. E nós queremos uma coisa eterna, na unidade, que dure, que perdure, e que não sofra essa solução de continuidade. Então a coisa mais próxima disso que nós temos enquanto estamos vivos é a arte. Você contempla um quadro, escuta uma música, aquilo está inteiro, inteiro. E porque está inteiro, isso me dá sentido, me dá um eixo, me dá alegria. A arte consola, conforta. É pão espiritual.

Há uma fome em nós que nenhuma prosperidade material, que nenhum sucesso material pode saciar. Você continua faminto, faminto de transcendência, algo que me diga: você é mais que o seu corpo, você é mais do que as suas necessidades básicas, você é mais do que essa coisa quantitativa, com tal peso, tal cor, tal idade: você é aquilo que está presente no seu desejo, no seu sentimento, na sua alma.

Então eu falo: mas que bom que tem isso! A gente vê pessoas, por exemplo, que não dão conta, que não são capazes, por uma série de motivos, ou porque nem pensam nisso, de articular esse desejo – e só falam assim: Ah, mas que coisa boa que tem isso! Que filme bom! Que bom que tem esse filme, que bom que tem essa música, que bom que existe esse livro! Porque esse livro me dá o que eu estou buscando.

Olha, há algo mais nos acenando! E nos acenando de onde? Não foi a religião quem inventou, não foi a filosofia quem inventou. Está acenando de dentro do nosso próprio ser. É o desejo profundo que nós experimentamos, na nossa orfandade original – nós já nascemos órfãos – de ter sentido na vida, de ter significado e de ter perenidade: Não pode acabar! Esse é o desejo que nós temos. E isso tudo significa. A pessoa que tem essa experiência e que tem esse desejo, nós dizemos que é uma pessoa que tem vida interior, vida simbólica. Nós podemos dissecar um corpo, abrir um cadáver, que nós não vamos achar onde está isso. Mas essa pessoa viva nos diria desse desejo, desse sentimento, dessa capacidade de sofrer, de ter frustrações, dores profundas, depressões indescritíveis e alegrias indescritíveis também. De onde vem isso, de onde nasce isso a não ser da própria profundidade da nossa alma e do nosso sentimento? Então a arte nasce daí e produz a partir daí.

Não adianta eu falar: agora eu vou fazer um livro maravilhoso sobre isso ou sobre aquilo. Não acontece! Porque a gente – o autor – não tem poder sobre a sua obra nesse sentido. Ela lhe é dada, lhe é oferecida como um dom, para o deleite, para a alegria de toda a comunidade humana. Imaginem nós sem isso! A pobreza de viver lutando pela comida, pela roupa, pelo emprego, pela casa. Nós somos mais que isso! É como o sentimento do pudor, não é? O pudor é exatamente o sentimento que diz que você é mais do que o seu corpo. É por isso que temos vergonha. E quando a gente procura a arte, é tão maravilhoso isso. Porque sem saber e sem querer nós estamos procurando as coisas espirituais, de natureza divina – divinas e espirituais porque dizem respeito àquilo que não tem peso, nem tempo, nem medida, mas que sem isso a gente está regredindo à pura barbárie: nós nos tornaríamos bárbaros.

Então a arte nesse sentido consola, conforta, alegra, e às vezes com muito choro. Há obras que nos deixam prostrados. E falando sobre o quê? Às vezes sobre nada. Há um poema, que é impossível não falar dele, que é um poema do Drummond, se chama Tarde de maio; é um dos poemas mais maravilhosos, pra mim, que Drummond já escreveu. Ele fala: "Tarde de maio...” (o poema é um poema longo, mas ele é constrangedor, tal é a beleza dele). E o que ele está falando? Sobre uma coisa mais perecível, que é o sol se escondendo no ocaso, numa tarde luminosa de maio, aquela luz própria de maio. É isso. Ele fala sobre isso. Quer dizer, ele fala sobre nada. Porque só eu, só o homem pode se incomodar e se comover com o sol que se esconde no horizonte, com uma árvore florida, com isso, com aquilo, com as coisas mais mínimas, mais rasteiras, mais cotidianas, que escondem, em si mesmas, a beleza. E é essa a beleza que toda arte procura. Não importa o assunto, não importa o tema, não importa o enredo: é a beleza que se esconde nas coisas, que se revela.

E é tão forte isso, que há pessoas que começam a olhar flores depois que viram flores em um poema, que vão contemplar o céu estrelado depois que viram o céu estrelado em uma obra de arte. E falam: Como é que eu não tinha percebido que é bonito desse jeito? Então foi a força movedora e comovedora da arte, que faz com que nós abramos os olhos para a maravilha da criação, a maravilha da experiência humana que nos aguarda.

Então quando perguntam: Qual é o papel da obra de arte? É nenhum! Ela não tem papel. Ela não é didática, ela não é catequética, ela não é filosófica. Ela é expressão pura. Você encontra um pintor, por exemplo, desenhando e apagando, desenhando e apagando, até se comprazer e falar: Agora está bom! Agora o quê? Um ramo, uma fruta, um perfil, um rosto – coisas que não valem absolutamente nada! É dessa matéria imponderável, sem valor quantitativo, que é feita a obra de arte. Um quadro valer milhões é o mesmo que não valer nada, porque não tem como medir a importância, a magnitude daquilo que está expresso numa obra, que é a realidade espiritual.

Então, os artistas, apesar de si mesmos, apesar das muitas bobagens que falam, às vezes até sobre a própria obra, de tudo aquilo que eles discursam, de toda a teoria, o que funciona aí é a obra: ela está dizendo ou não? E por causa dessa qualidade eterna e dessa imponderabilidade, eu vejo que, para a humanização, a arte está no mesmo caminho da mística, ou da fé religiosa, não da fé política, ou da fé filosófica, mas da fé religiosa e da mística, porque ambas experiências também são independentes da razão – são experiências. A beleza é uma experiência, ela não é um discurso.

Se você, por exemplo, passa todo dia por um lugar e vê determinada obra, ou determinada casa, ou determinada coisa e um belo dia você se espanta com aquilo, você fala: Mas que beleza, eu nunca tinha enxergado isso desse jeito! Pode dar graças: porque você está tendo uma experiência de natureza poética que é ao mesmo tempo religiosa; religiosa porque liga você a um centro de significação e de sentido. Você fala: Ah! Então tá! Então dá pra eu viver mais! É indizível, não tem palavras pra isso. É como a experiência mística. A pessoa chega perto de você e fala: Eu vi Nossa Senhora! Você discute com essa pessoa? De jeito nenhum! É indiscutível! É indiscutível! E é uma palavra – a palavra poética toda vida foi considerada a linguagem por excelência; se a gente pudesse falar tudo de forma poética, que descanso que seria, viu? Porque é a linguagem enxuta, concisa, ela não suporta enfeite, ela não suporta! Se você vai enfeitar um poema, já é um desastre absoluto. Guimarães Rosa falava assim: Não tenha medo de cortar quando você está escrevendo. As vezes tá até bonitinho. Mas corte sem dó! Porque não precisa mais daquilo, você já disse! E quanto mais eu invento, enfeito querendo dizer, mais eu estrago; ao fim não sobre nada, sobra retórica. E o que que é a retórica? É quando a expressão do sentimento é maior do que ele, não é? É isso que é retórica. É insuportável. Eu falo tanto que eu amo você, que a gente começa a duvidar, não é? A retórica é insuportável – agora os políticos adoram. Mas nós não acreditamos mais, graças a Deus. Nós somos escaldados! Nós queremos agora um discurso político que seja poético- o que é quase impossível.

Esses braços da experiência humana, que são arte, mística e fé, para mim – é claro que nós vamos discutir depois –, para mim, fazem parte e são braços do mesmo rio: é a terceira margem de Guimarães Rosa, a terceira margem da alma.

Então, olha que maravilha, se as escolas compreendessem isso, em vez de discutir poesia, oferecessem a própria poesia, oferecessem a literatura, a arte, o teatro, tudo aquilo que na escola é humanizador. Mas o ensino hoje está voltado para a parte lógica, intelectual – intelectual no sentido pior dessa palavra, aquilo que não toca o sentimento: Eu sou um intelectual, eu não me comovo. O intelectual é dono de si. Essa ideia é equivocada, assim como é equivocada também a ideia do poeta. Se vocês querem dar uma função importante para alguém, não dê para o poeta, porque ele está com a cabeça nas nuvens. É exatamente o contrário. Quem tem a cabeça nas nuvens não é caso de poesia, é caso de psicologia, não é? Não é mais literatura; isso é outro setor! Então, o verdadeiro artista é ele quem está exatamente centrado na realidade. A arte não aliena ninguém, não aliena ninguém, ela não tira da realidade. É o contrário: ela traz para o real, para a realidade, toca na minha intimidade, aquilo que eu sou quando estou sozinho comigo mesmo. E quando isso acontece, é uma festa: é o reino do céu, no qual só têm acesso as crianças, os que se tornam crianças.

A poesia, sendo expressão pura e ela não sendo discurso lógico, ela me dá o peixe sem que eu precise de entender o anzol. Eu fiz uma vez uma experiência muito interessante numa fazenda, onde estavam pessoas, assim, simples, sem escolaridade, sem esse poder de articulação que vocês tem, que nós às vezes temos – pensamos que temos – a pessoa escutou e falou assim: Mas é superior esse negócio aí, hein! Superior esse negócio aí! Quer dizer, ela entendeu? Entendeu sim! Entendeu sim! Ela pode não decodificar os versos, mas ela saca a pulsação vital da obra, da poesia. Ela fala: É bonito. Fala de novo! Fala aquele negócio pra nós de novo!

Eu conheci um operário, ferroviário, ele estava arrumando a casa dele, então ele fez um jardim, eu falei: Ah que bom! Você está fazendo uma reforma bacana aí. Ele falou: Estou! E eu vou fazer um jardim aqui, mas não é desse quadrado sem poesia não, vou fazer, umas coisas assim, que tem “umas volta”. Ele é uma pessoa barroca, não é? Sem saber quer era barroco, bem barroco. E disse: Eu vou fazer umas voltas e ali na platibanda da casa eu vou fazer uns fingimentos. Olhe a alma desse operário, desse ferroviário, que vivia com a camisa cheia de graxa, eu o conheci pessoalmente, é o poeta. Eu, fazer jardim, essas coisas sem poesia? Todo mundo fala poesia, a palavra, não é? Mas ele entendeu a poesia como esses fingimentos aí que dão um tombo na casa, ela fica bacana, bonita...

É a beleza, é a necessidade da beleza. É a mulher na favela que mora no barracão de lata e pega o plástico, estica o plástico, põe uma jarra e uma rosa de plástico, em cima e fala: Bom, agora essa casa ficou boa! É isso, gente! É isso! Essa fome de beleza ela é universal! Nós não podemos achar que alguém não entenda isso. Todo mundo entende, porque nós somos feitos da mesma farinha. Então, essa fome é universal. É o pedreiro assistindo balé pela primeira vez e cutucando o outro, Isso se chama balé, viu! – explicando o outro que tava mais ignorante que ele. E ele maravilhado! O que que ele estava tendo? Quanto que vale um balé? Não vale nada! Era na praça pública, era de graça... Mas deu a ele dignidade. Eu sou pedreiro, mas eu entendo de balé! Eu vejo balé! Todo mundo entende de tudo. É a coisa mais democrática que tem. E por que é que elitizamos tanto isso, não é? Há pessoas que tem vergonha de entrar na livraria, não é porque não queiram, mas é vergonha: Eu não mereço entrar numa livraria. Isso eu acho que é culpa do nosso sistema de educação, que não coloca o ensino da língua via literatura brasileira; essa língua maravilhosa que é a língua portuguesa.

A gente vê hoje até nas construções – a construção civil – quando você está precisando de apartamento, você vai procurar um apartamento pra morar, é tão impressionante a feiura do desenho, não tem luz, é apertado, é cheio de coisinha, como disse uma amiga, ela falou assim: Eu não aguento mais azulejo com barrado, eu não aguento, eu não aguento! Porque tudo isso tem uma coisinha que seria um sinal de algum bom gosto, de alguma humanização, mas você não aguenta morar ali dentro. São as escolas, as igrejas muito feias, são verdadeiros armazéns transformados em igrejas. Quer dizer: nós precisamos da beleza! Beleza não é luxo, é necessidade!

Eu vou só contar [um caso] – não é anedota não, é bíblico, mas parece anedota –: quando Jesus estava comendo na casa do fariseu, Madalena veio e derramou bálsamos caríssimos nos pés de Cristo, Judas falou: Que desperdício! Onde já se viu fazer uma coisa dessa? Dinheiro que podia dá comida aos pobres! Cara legal, não é? A gente faz muito isso, não faz? Que bobagem! Devia dar esse dinheiro pros pobres, a gente faz isso ás vezes – uma hipocrisia profunda, não é? Aí Cristo falou com ele assim: Pobres vocês sempre terão convosco, mas ela está me ungindo pra sepultura, ela está derramando o que há de mais precioso, que é estou precisando agora. E nós precisamos disso, não é verdade?

[Eu vejo] livros feios para dar para o povo, com a ilustração feia! Eu procuro – quem souber onde tem, me conte – uma Bíblia para criança que seja bonita, bela; as ilustrações são horrorosas, não é verdade? Isso é porque é um texto engajado! O povo é pobre, não pode ter coisa bonita! Mas é o pobre que está precisando mais ainda, ele não tem, e já vai ter o livro mais feio, a ilustração mais feia. Então, há todo um sentido de economia muito equivocado. A arte não é econômica, não. Ela é generosa. É econômica só na hora de fazer, que você não pode por enfeite, não é? Ela não suporta. Ela já é bonita demais.


SENSORIAL

Obturação, é da amarela que eu ponho.
Pimenta e cravo,
mastigo à boca nua e me regalo.
Amor, tem que falar meu bem,
me dar caixa de música de presente,
conhecer vários tons para uma palavra só.
Espírito, se for de Deus, eu adoro,
se for de homem, eu testou com meus seis instrumentos.
Fico gostando ou perdoo.
Procuro sol, porque sou bicho de corpo.
Sombra terei depois, a mais fria.


GRANDE DESEJO

Não sou matrona, mãe dos Gracos, Cornélia,
sou é mulher do povo, mãe de filhos, Adélia.
Faço comida e como.
Aos domingos bato o osso no prato para chamar o cachorro e atiro os restos.
Quando dói, grito ai,
quando é bom, fico bruta,
as sensibilidades sem governo.
Mas tenho os meus prantos,
claridades atrás do meu estômago humilde
e fortíssima voz para cânticos de festa.
Quando escrever o livro com o meu nome
e o nome que eu vou por nele, vou com ele a uma igreja,
a uma lápide, a um descampado,
para chorar, chorar, e chorar,
requintada e esquisita como uma dama.


IMPRESSIONISTA

Uma ocasião,
meu pai pintou a casa toda
de alaranjado brilhante.
Por muito tempo moramos numa casa,
como ele mesmo dizia,
constantemente amanhecendo.


PARA COMER DEPOIS

Na minha cidade, nos domingos de tarde,
as pessoas se poem na sombra com faca e laranjas.
Tomam a fresca e riem do rapaz de bicicleta,
a campainha desatada, o ar enfeitado de laranjas:
'Eh bobagem!'
Daqui a muito progresso técno-ilógico,
quando for impossível detectar o domingo
pelo sumo das laranjas no ar e bicicletas,
eu meu país de memória e sentimento,
basta fechar os olhos:
é domingo, é domingo, é domingo.


CABEÇA

Quando eu sofria dos nervos,
não passava debaixo de fio elétrico,
tinha medo de chuva, de relâmpio,
nojo de certos bichos que eu não falo
para não ter de lavar minha boca com cinza.
Qualquer casca de fruta eu apanhava.
Hoje, que sarei, tenho uma vida e tanto:
já seguro nos fios com a chave desligada
e lembrei de arrumar para mim esta capa de plástico,
dia e noite eu não tiro, até durmo com ela.
Caso chova, não tenho trabalho nenhum.
Casca, mesmo sendo de banana ou de manga,
eu não intervo, quem quiser que se cuide.
Abastam as placas de ATENÇÃO! que eu escrevo
e ponho perto. Um bispo, quando tem zelo
apostólico, é uma coisa charmosa.
Não canso de explicar isso pro pastor
da minha diocese, mas ele não entende
e fica falando: 'minha filha, minha filha',
ele pensa que é Woman´s Lib, pensa
que a fé tá lá em cima e cá em baixo
é mau gosto só. É ruim, é ruim,
ninguém entende. Gritava até parar,
quando eu sofria dos nervos.


TABARÉU

Vira-e-mexe eu penso é numa toada só.
Fiz curso de filosofia pra escovar o pensamento,
não valeu. O mais universal a que chego
é a recepção de Nossa Senhora de Fátima
em Santo Antônio do Monte.
Duas mil pessoas com velas louvando Maria num oco escuro, pedindo bom parto,
moço de bom gênio para casar,
boa hora pra nascer e morrer.
O cheiro do povo espiritado,
isso eu entendo sem desatino.
Porque, mercê de Deus, o poder que eu tenho
é de fazer poesia, quando ela insiste feito
água no fundo da mina, levantando morrinho de areia.
É quando clareia e refresca, abre sol, chove,
conforme as necessidades.
Às vezes dá até de escurecer de repente
com trovoada e raio. Não desaponta nunca.
É feito sol.
Feito amor divino.


VASO NOTURNO

À meia-noite, José dos Reis
— que namoro escondido —
vem fazer serenata para mim.
Papai tosse alto,
tropeça por querer nos urinóis.
Que vergonha, meu deus,
pai, cachorrinha plebeia,
couves na horta
geladas de orvalho e medo.
Me finjo de santa morta,
meu céu é gótico
e arde.


MARIA

Hoje completa um ano que tou fazendo terapia
- o que você conta ao doutor?
Que tenho medo panifóbico de ver minha mãe morrer.
- Só isso?
Só. Coisa à toa feito não comer três dias porque vi formiga de asas, isso eu não conto mesmo. Só converso coisa séria.
- E ele?
É muito paciencioso. Diz que meu caso é difícil mas tem cura com o tempo. Qualquer dia me convida pra uma sessão no sítio.
- Você topa?
Tou pensando. Vai que aparece lá uma formiga de asas e apronta aquele escândalo. Me diz com que cara eu volto no consultório do homem?
- Mas ele tá lá pra isso.
Isso o quê? Tchauzinho, Catarina.
- Tchau.


NEUROLINGÜÍSTICA

Quando ele me disse
ô linda,
pareces uma rainha,
fui ao cúmice do ápice
mas segurei meu desmaio.
Aos sessenta anos de idade,
vinte de casta viuvez,
quero estar bem acordada,
caso ele fale outra vez.


Pergunta: Adélia, eu queria te pedir que você falasse, aprofundando um pouco no conteúdo do tema inicial, que você falasse um pouco também da questão da criação. Fazer poesia para você é uma coisa que me parece tão natural quanto está sendo para a gente ouvi-la. É verdade? É fácil? O poema cede com tanta naturalidade – ou é uma coisa que é difícil para você?

Mesmo quando é difícil é extremamente prazeroso. Não tenho angústia para fazer. Angústia é outra coisa; [eu tenho angústia] por outros motivos. Agora, quando você está tentando escrever um poema que já está pedindo para ser escrito – claro –, às vezes é muito fácil. Depois é só cortar. Mas às vezes também você não consegue resolver o problema, o poema, o problema-poema – Lacan adoraria, não é? Você não resolve o poema nos seus termos, então aquilo fica – às vezes vira boa prosa depois: é um retalho que a gente guarda, que vira boa prosa. Ou então você não consegue mesmo fazê-lo. Mas pode ser difícil, às vezes é muito fácil, mas nem sempre você consegue também: acontece de todo jeito, e a gente não deve ficar suando em cima dele também, não. Quando ele fica arrepiado a gente larga!

Público: Mas é um mistério!

Claro! É misterioso! Como é o seu processo de criação? Eu não sei. Tem a maior curiosidade para ver como é o processo criativo de um músico. É espantoso, não é? Ele acha a coisa mais natural; a gente acha espantoso. Mas ninguém descreve o ato criador, não. Ninguém.

Pergunta: Você lia muito quando criança? Como você definia livro, escrever, ler, amar e a beleza da escrita.

Nossa, difícil! Definir ler, escrever, amar, beleza da escrita.

Pergunta: Três dias está bom? Três dias....

Espera lá! Eu acho que só dou conta da primeira! O resto eu não sei dizer... Ela perguntou se eu lia muito. Eu lia muito, e eu acho que foi obra da escola. Em 1946 eu estava saindo do curso primário. E nós tínhamos a biblioteca da escola, que não tinha nenhuma sofisticação. Amontoavam os livros lá na frente e a gente ficava quase à tapa querendo pegar os livros. Então eu li todo o Monteiro Lobato, (inaudível), aqueles autores que as escolas tinham, poesia de mais – e foi só isso. É como fruta oferecida à criança: você tem que dar isso, não tem segredo. Então eu amava ler.

Mas tinha uma coisa a nosso favor aquele tempo. A gente tinha só rádio. Demoramos demais a ter rádio, luz elétrica, no lugar onde eu morava, mas tinha o livro. Eu tinha uma vizinha – que ficou uma família amiga nossa, até hoje – que tinha na casa dela, eu chamava de biblioteca. Hoje quando eu lembro é comovente mesmo, para todos nós que participamos disso lá. Era um guarda louça, estreitinho, cheinho de livros. Então aquilo era um tesouro! Eu li toda aquela coleção de literatura para moças – M. D. Lee. Li tudo aquilo, ficava fascinada e fantasiando aqueles romances, aqueles príncipes. E era sempre uma menina pobre, na casa de um nobre, e o nobre se apaixonava por ela a contragosto – mas ele estava apaixonado – e afinal casava com a moça.

Então tem importância! Você lê e vê que você ama a letra impressa, você ama a história. Então eu acho que é só isso. Eu amei realmente os livros.

E o meu pai era pouco escolarizado – ele fez até o terceiro ano escolar na roça –, mas ele sabia de cor alguns versos: Morrer, dormir, jamais termina a vida...

Pergunta: Há uma entrevista – que eu não sei se você se lembra – que você que deu para o Luis Jean Lauand, da Faculdade de Educação da USP, brilhante, em que você fala que a metafísica pousa, mora no real. E toda essa relação que você o tempo todo, reiteradas vezes, você fala desse cotidiano mais prosaico, mais simples, como a minha mãe que faz arroz e feijão, mas cantava, ou a rotina perfeita é Deus, todas as coisas, o bom mesmo é a segunda-feira, quando tudo volta para o lugar. Quer dizer, a vida, olhando para a sua obra, é revelada na sua maravilha, da simplicidade do cotidiano repetitivo, e na sua não-excepcionalidade do cotidiano o excepcional se revela. Então [eu gostaria] se você pudesse comentar um pouquinho isso; eu acho que é o grande tema que ilumina a nossa vida.

Eu estava falando agora mesmo com uma repórter, um pouquinho antes daqui. Essa insistência no cotidiano é porque a gente só tem ele. É muito difícil a pessoa se dar conta de que todos nós, artistas ou não, pessoas pobres ou ricas, nobres ou plebeias, só temos o cotidiano. E o cotidiano de todo mundo é absolutamente ordinário – ele não é extra-ordinário; o cotidiano da rainha da Inglaterra deve ser tão insuportável quanto o de uma lavadeira. Porque imagine todas aquelas obrigações, aquela roda, como um peso que deve ser feito e que deve ser vivido.

Então, a cada um de nós cabe a vida comum, o cotidiano. E eu tenho absoluta convicção de que é atrás e é através do cotidiano que se revelam a metafísica e a beleza; está na Criação, já está na nossa vida.

O Drummond tem um poema que, por outras vias, ele fala assim – ele fala e fala na infância, e depois fala assim: Eu não sabia que a minha vida era mais bonita que a de Robinson Crusoé. Esse poema dele é famoso, não é? Tem gente que fala assim: Gente, mas que vida bacana a de Santa Joana D´Arc! E a gente quando é criança até imagina a gente com aquela (inaudível), e vencendo os inglesas, a gente quer uma vida heróica. Nós todos aspiramos a uma vida heróica e falamos Deus me livre desta vidinha minha, uma vidinha sem nenhum encanto! Mas essas vidas ficaram encantadoras depois que passaram! É depois que acabou! Já pensou em Joana D´Arc, que tristeza!? Não é? Presa, aquela roupa horrorosa, sujeita à morte, na poeira, a cavalo. São Paulo, Einstein: Ah, meu emprego que não sai! Quem já lei a vida dele sabe. [Ele dizia:] Eu preciso de um emprego urgente! –  fazendo cartinhas para as pessoas, querendo emprego.

O cotidiano é na poeira, para todos nós. E o mais bacana que tem é a gente tirar o nosso heróico, o nosso heroísmo, deste cotidiano. Há um livro que é só a respeito disso, que é um livro fundante para nós, do ponto de vista dessa questão do cotidiano, que se chama A negação da morte, de Ernest Becker – quem puder leia. Ele fala: O nosso heroísmo é aqui, no pequeninho, naquela paciência impossível de ter, que eu tenho que ter. Deus me livre lidar com esse doente, com isso e com aquilo! Eu queria viver como... (aí você bota um personagem bem famoso). Pois o personagem não existe! Não existe isso! Não existe! Caiamos na real! Bonita é a nossa vida! A nossa vida é linda! É mesmo, é linda!

Eu acho que só a morte é quem dá um perfil para nós. Depois que a pessoa morre, aquelas pessoas mais anônimas, de vida mais ordinária – você fala: Coitado, você lembra como ele fazia isso, fazia aquilo? A pessoa ganha um perfil, um retrato, e às vezes heróico – porque viveu a vida que lhe foi dada.

Então o cotidiano, para mim, é o grande tesouro! Quem falou isso, eu já não sei mais; foi um filósofo – foi Ortega y Gasset: Admirar-se daquilo que é natural é que é o bacana! Admirar-se da água aqui, quem é que se admira disso aqui: A água é a água, é H2O, eu conheço isso demais! Mas a alma criadora, criativa, sensível, um belo dia se admira desse ser extraordinário, que ninguém entende. Falar H2O adianta o quê? Adianta nada! Está aí, tremeluzindo aqui na minha frente, matando a minha sede. Eu não entendo a água, eu não entendo abacaxi, eu não entendo feijão. Alguém entende feijão? Pois é, olha que coisa extraordinária! [Está] no prato, e eu como! A vida é extraordinária!

Agora eu não sei quem falou isso: Admirar-se de um bezerro de duas cabeças qualquer débil mental se admira! Genial, não é? Qualquer bobão sai atrás para ver, vai no circo para ver a mulher tronco. Mas admirar-se do que é natural, só quem está cheio do Espírito Santo. É mesmo! Não é brincadeira não! É porque é o outro olhar, [o olhar] da sensibilidade. E o mundo é magnífico, magnífico! E agora que tem água nos anéis de Saturno, hein!? Água em Júpiter! Vocês já pensaram? É bom demais estar vivo! É bom demais!

E eu quero essa vidinha, é essa que é a boa! Com toda as chaturinhas dela, as coisas difíceis, mas é maravilhoso, porque quando você cai nesse lugar aí, você aceita a sua vida. Então você não sai mais à procura de heroísmos extraordinários. A televisão adora isso. O bombeiro cai no Rio Tietê e salva o menino. Aí vida herói naquele momento! Mas, é claro, é o ofício dele, ele tem que fazer isso. E nós todos queremos que na nossa vida, no nosso currículo, tenha um ato heróico, e às vezes o ato heróico de cada vida é o mais anônimo, o mais silencioso, que só Deus sabe! Às vezes nós não contamos nem para a pessoa mais íntima nossa. É isso é que é a maravilha, não é? Isso é uma coisa valiosa demais, preciosa demais: a vida humana. Então, Cecília, o cotidiano tem para mim esse aspecto de maravilha, de tesouro – sabe? – tesouro mesmo.


CASAMENTO

Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele diz coisas como “este foi difícil”
“prateou no ar dando rabanadas”
e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.


Não tem coisa mais ordinária do que limpar peixe, não é? É a vida cotidiana, mas é um ato humano. O que é humano já está combinado que é maravilhoso. Vamos combinar, não é, gente? É maravilhoso!

Pergunta: Você acha que hoje ainda é possível falar – sem falso moralismo, e sem hipocrisia – em uma educação dos afetos, em numa educação da sensibilidade.

Eu acho que precisa só disso, sabe? Precisa só disso. Porque a educação acadêmica formal está cuidando bem das disciplinas da área, vamos dizer assim. Porque você vê, por exemplo, pessoas muito bem formadas academicamente, que são completamente infelizes e descoordenadas quanto aos próprios afetos: pessoas de difícil relacionamento, pessoas tristes, infelizes, e toda a infelicidade ou felicidade humana tem a ver com os afetos. Então é uma das vertentes que a escola descuida – quer dizer, a escola verdadeira teria, terá e tem que cuidar da educação da sensibilidade.

É a mesma coisa da sensibilidade para o religioso. Antigamente se davam doutrinas religiosas nas escolas. Hoje há um pensamento – há vários anos atrás já – que se deve educar a sensibilidade do religioso, ou para o religioso. Eu acho que tudo mora na educação dos afetos: a fonte da infelicidade das pessoas é de natureza efetiva, sempre. A psicologia sabe disso e cuida só disso. Não é porque eu sei um teorema maravilhoso que eu estou feliz ou que eu vou ficar perturbado. É no afeto! Ninguém me ama, ninguém me quer, ninguém me chama de Baudelaire!

É afeto, é afeto! Eu não amo! Eu não amo! Eu não me relaciono! Eu não perdoo! Eu não desejo! Eu não espero! Eu não sou compassivo! Eu não sou feliz e não permito que as pessoas sejam! É amor, é o centro!
É por isso que eu acho que a educação pele arte educa a sensibilidade, porque a arte é amorosa, ela é fraterna, ela é amorosa, ela não exclui, ela não faz acepção de pessoas, ela puxa para si. Então, você falou tudo: é educação da sensibilidade, do sentimento.


ENSINAMENTO

Minha mãe achava estudo
a coisa mais fina do mundo.
Não é.
A coisa mais fina do mundo é o sentimento.
Aquele dia de noite, o pai fazendo serão,
ela falou comigo:
'coitado, até essa hora no serviço pesado'.
Arrumou pão e café, deixou tacho no fogo com água quente.
Não me falou em amor.
Essa palavra de luxo.


Não precisa falar em amor: é só ser amor, dar amor, sentir amor. Nós fazemos é discurso – não é? –: sobre o amor, sobre o perdão. Eu sei tudo sobre perdão! Só que eu perdoo mas não esqueço. Não é assim que a gente fala? Então não adianta, não há progresso na vida interior! É uma vivência! Não é discurso, é vivência!

Pergunta: Eu gostaria que você falasse um pouco mais sobre essa questão da arte, a transcendência através da arte.

Eu acredito até que por outras vias a gente tenha falado: se a obra é de arte, ela é necessariamente transcendente. Aquele poema do Drummond, que é um poema que parece que não tem transcendência nenhuma – todo mundo sabe –, a pedra no meio do caminho: Tinha uma pedra no meio do caminho. No meio do caminho tinha uma pedra. Nunca me esquecerei desse acontecimento na vida de minhas retinas tão fatigadas. Tinha uma pedra no meio do caminho. No meio do caminho tinha uma pedra. Qual é a transcendência desse poema? É o susto de alguém que tropeça em uma pedra e fala: Puxa, pedra? Pedra? E ele ficou [falando] Pedra, pedra, pedra e fez esse poema.

A transcendência é exatamente o sentimento de estranhamento que a coisa concreta te dá: pedra é pedra, não é? E você perde a poesia quando você olha pedra e vê só pedra mesmo, não é? E quando a pedra te diz alguma coisa, ela é um veículo para que você transcenda as coisas para uma instância maior, mais alta. Então não é mais que isso, porque é tudo isso, não é?
A caneca de chá... Olha que coisa mais corriqueira não tem jeito:


SOLAR

Minha mãe cozinhava exatamente:
arroz, feijão roxinho, molho de batatinhas.
Mas cantava.


Até aí (Minha mãe cozinhava exatamente: arroz, feijão roxinho, molho de batatinhas), todo mundo fala: “E daí? Todo mundo faz isso! [Mas aí vem:] Mas cantava. Aí é o salto – acredito que é – para que arroz, feijão e molho de batatinhas sejam mais do que apenas isso quando tem uma mulher cozinhando. É nesse sentido. Por isso que o espiritual não está longe, não. A transcendência está aqui ó: está no meio, está conosco, mora conosco.


BENDITO

Louvado seja Deus meu Senhor,
porque o meu coração está cortado a lâmina,
mas sorrio no espelho ao que,
à revelia de tudo, se promete.
Porque sou desgraçado
como um homem tangido para a forca,
mas me lembro de uma noite na roça,
o luar nos legumes e um grilo,
minha sombra na parede.
Louvado sejas, porque eu quero pecar
contra o afinal sítio aprazível dos mortos,
violar as tumbas com o arranhão das unhas,
mas vejo Tua cabeça pendida
e escuto o galo cantar
três vezes em meu socorro.
Louvado sejas, porque a vida é horrível,
porque mais é o tempo que eu passo recolhendo os despojos,
– velho ao fim da guerra com uma cabra –
mas limpo os olhos e o muco do meu nariz,
por um canteiro de grama.
Louvado sejas porque eu quero morrer
mas tenho medo e insisto em esperar o prometido.
Uma vez, quando eu era menino, abri a porta de noite,
a horta estava branca de luar
e acreditei sem nenhum sofrimento.
Louvado sejas!

Mas agora, uma boa notícia:


NO CÉU

No Céu, os militantes,
os padecentes e os triunfantes
seremos só amantes!


Muito obrigada!



Gravado no Programa Sempre um Papo, de 16.08.2008.
Transcrição feita por Bruno Costa Magalhães.

2 comentários:

  1. Agora eu fico aqui, parada, a fala da Adélia em mim, olho pra tela do note, pra cama, meu sobrinho ali fazendo um desenho do dever de casa...o calor, o som do ventilador...olho pela janela e vejo o varal, o pé de acerola, coqueiros e um pedaço do céu prenunciando chuva..será que ela virá hoje? Sempre falei desta poesia do cotidiano, e pensava: será que sou doida? Agora a Adélia confirma na prosa (toda ela poética) o que é cristalino na sua poesia: o valor da poesia da vida, do cotidiano, da simplicidade. Me lembro de uma conversa com uma amiga, que parecia envergonhada porque gosta de cozinhar para o marido e os filhos aos domingos. Falei pra ela: ah, acho que isso é poesia...Dia destes fui lá exatamente num domingo e já na rua, senti o cheiro da galinha cozinhando...tem coisa mais bonita? Enquanto a galinha "apertava" no fogo brando, tomamos uma cerveja e conversamos...isso pra mim é uma das belezas da vida.

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  2. Bruno, parabéns pelo trabalho da transcrição. Abraço.

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